O que de fato diferencia esses níveis de conhecimento de que falamos, ou seja, qual a natureza específica da sensação, da crença e do conhecimento? Vejamos o que Platão e Protágoras escreveram a respeito.

Platão é um filósofo nascido em Atenas do período clássico. Sua obra trata de política, moral, ciência e arte. Platão descrevia suas teses em textos escritos na forma de diálogos temáticos, isto é, cada diálogo tratava de um tema específico como Justiça, Conhecimento, Coragem, etc.

Já Protágoras é um “sofista” nascido alguns anos antes de Platão. Um sofista é um sujeito tido como conhecedor de técnicas de aprendizado de oratória, matemática, geometria, etc.. É alguém que tem uma “especial perícia ou conhecimento para comunicar. Sua sophia [sabedoria] é prática, quer nos campos da conduta e política, quer nas artes técnicas” (GUTHRIE, 1995, p. 34). A relação entre as posições de Platão e Protágoras acerca do conhecimento é, para dizer o mínimo, tensa.

Protágoras é considerado, do ponto de vista do conhecimento, um relativista. Ele defendia, por exemplo, que para cada tema havia um argumento a favor e outro contra. Dizia que podia fazer do “argumento mais fraco o mais forte”. No Teeteto de Platão ele aparece defendendo sua tese mais famosa, a ideia de que “(...)o homem é a medida de todas as coisas, das que são e das que não são. (Teeteto, 152c).

No Teeteto Platão faz um exame cuidadoso dessa doutrina, destacando que não se trata apenas de uma frase de efeito criada pelo sofista para agradar às multidões, estratégia típica nas atividades de Protágoras. Protágoras realmente defendeu a tese de que em assuntos como política, moral, religião, saúde, o indivíduo é a medida, isto é, não existe nada além daquilo que cada um percebe em seu campo de visão, audição, etc. Essa filosofia gera um relativismo, uma perspectiva que leva em conta apenas aquilo que a sensibilidade de uma pessoa capta. Mas por quê? Que tem a ver sensibilidade com a ideia de que o homem individual é medida de todas as coisas?

Em primeiro lugar, é preciso considerar que Protágoras lecionava, segundo Platão, duas qualidades diferentes de ensino. Um ensino mais popular e acessível era dado à multidão que, ocasionalmente, pagava e freqüentava seus cursos. Um outro tipo de lição, bem mais detalhada, era ministrada aos chamados “iniciados”, discípulos assíduos que recebiam as explicações pormenorizadas das teses de Protágoras.

Em segundo lugar, sempre de acordo com Platão no Teeteto, o sofista utilizava em suas lições aos iniciados o núcleo principal da filosofia do pré-socrático Heráclito para dar um fundamento à tese do homem-medida. De Heráclito Protágoras emprestava a ideia de que “tudo  está em movimento”. Com esse pensamento, Protágoras negava que alguma coisa pudesse manter suas qualidades essenciais de forma perene. Por exemplo, com a ideia de que tudo está sob efeito de um fluxo constante justifica-se porque não há razão para acreditar em ideias gerais acerca da humanidade, do destino humano, de conhecimento, etc. Protágoras chega a dizer que o conhecimento de medicina, mesmo que se defina por um conjunto de técnicas sobre o bem-estar do corpo, não é um caso de verdade absoluta. Os preceitos médicos não fazem mais do que substituir uma sensação ruim, como a febre, por uma sensação boa, a saúde. Estamos aqui no plano da sensação e, sobretudo, bem de acordo com a doutrina de que cada um é juiz solitário de tudo que é verdadeiro e falso.

Em suma: é porque tudo se move que o homem, ser sensível capaz de reter momentaneamente alguns traços das coisas, é a medida de tudo. Protágoras pode ser considerado, desse modo, o primeiro relativista da história.

Platão escreveu que os homens estão ligados desde o nascimento às sensações primitivas. Por conta disso, vivem num estado mental permeado por “imagens” dos objetos existentes. Para Platão poucos alcançam o verdadeiro conhecimento. Platão crê que é definitivo o apego da maioria das pessoas a realidades transitórias, mas não deixa de indicar, repetidas vezes e em vários textos, o caminho que leva ao verdadeiro conhecimento. Esse caminho é diferente daquele indicado por Protágoras em muitos pontos essenciais, como veremos.

A principal obra de Platão é um diálogo chamado República. É uma síntese de seu pensamento. Não por acaso é o texto mais divulgado de Platão. Nessa obra Platão desenvolve uma série de teses sobre conhecimento. Mas o autor escreveu uma outra obra que tratava exclusivamente da questão do conhecimento. Trata-se do diálogo Teeteto, já citado. Confeccionado após a República, provavelmente num momento onde Platão já não estava contente com os resultados expostos em sua obra anterior, é nessa obra que Platão desafia de forma definitiva o relativismo de Protágoras.

Para dar cabo dessa tarefa, Platão desenvolve três alternativas para a definição de conhecimento:

1) conhecimento é sensação; 2) crença-opinião verdadeira é conhecimento e 3) opinião verdadeira justificada com a razão é conhecimento. A primeira alternativa é a opinião de Protágoras. Na passagem 186c do Teeteto Platão é categórico ao rebatê-la:

Naquelas impressões (sensações), por conseguinte, não é que reside o conhecimento, mas no raciocínio a seu respeito; é o único caminho, ao que parece, para atingir a essência e a verdade; de outra forma é impossível.

Ao dizer que o raciocínio sobre as impressões é o que caracteriza o conhecimento, Platão condena a tese de Protágoras à inconsistência epistemológica, isto é, nada na tese permite retratar o processo de conhecimento. Um pouco antes deste trecho, o diálogo apresenta a noção de alma como responsável pela “síntese” da sensação. Platão insiste ali que o que organiza em nós o fluxo de dados captados pelos sentidos é o que hoje chamamos mente ou espírito. Platão avalia que a sensação não pode ser responsável por um conhecimento porque ela não opera no nível do “por que”, mas no nível do “através de que” (Diès, 1972, p. 458). Em outras palavras, Platão está dizendo que a sensibilidade não é capaz de fazer um juízo da forma “esta flor é bela”. Mesmo que meus órgãos sejam tocados pela beleza da flor, a expressão “é bela”, e seu sentido, é uma operação realizada pelo espírito. Platão rejeita também a ideia de que opinião ou crença, ainda que verdadeira, possam ser conhecimento. No diálogo Mênon (98a) Platão escreve:

Pois também as opiniões que são verdadeiras, por tanto tempo quanto permaneçam, são uma bela coisa e produzem todos os bens. Só que não se dispõem a ficar muito tempo, mas fogem da alma do homem, de modo que não são de muito valor, até que alguém as encadeie por um cálculo de causa. (...) e quando são encadeadas, em primeiro lugar, tornam-se ciências, em segundo lugar, estáveis. E é por isso que a ciência é de mais valor que a opinião correta, e é pelo encadeamento que a ciência difere da opinião correta.

Esse “encadeamento” de que fala o filosofo é o raciocínio que cada um é capaz de fazer sobre os elementos que compõem sua opinião. Trata-se, como disse Da Costa na passagem já citada no texto, de ter uma justificação para sua crença. Em Platão essa justificação é o conhecimento das causas. Aristóteles desenvolveu posteriormente a ideia de que, se uma pessoa tem conhecimento, ela deve dominar necessariamente o saber da causalidade dos eventos e coisas. Ciência ou Conhecimento, tanto para Aristóteles como para Platão, é o domínio das conexões causais verificadas na realidade.

No que toca à crença, para Platão trata-se de um tipo de fluxo de idéias que se caracteriza por uma tendência natural à mudança. Nossas crenças podem até ser verdadeiras ou plausíveis, como, por exemplo, no caso de dizermos que “o egoísmo é uma propriedade natural do ser humano”. Mas até que saibamos expor a causa, dizer o porquê, ou enunciar a função que a natureza reservou a esse sentimento, não estamos autorizados a emitir aquele juízo com pretensão de conhecimento. Se alguém lançar contra essa idéia uma série de argumentos, podemos modificar nossa posição sobre o problema, sem, no entanto, conhecer de fato a questão. Platão dizia que a estrutura de nossas opiniões segue mais ou menos o esquema de nossas sensações. Esse esquema é o seguinte:


No caso da visão, ter uma experiência sensória é ter um olho que recebe, com ajuda da luz, aspectos dos objetos. À medida que o objeto se movimenta, nossa visão também se modifica. Se estiver mais próximo, vejo com mais nitidez o tom de cinza. Se me afastar demais, não consigo distinguir a cor. Para Platão, toda sensação, seja auditiva, gustativa ou tátil, é um caso de aproximação entre um órgão sensível (olho, ouvido, etc.) e um objeto. A crença/opinião, para Platão, tem essa estrutura porque as informações que adquirimos mediante opinião se mantêm apenas até que outra sensação, mais forte ou mais adequada, substitua a sensação anterior que nos fazia emitir aquela opinião. Desse modo, toda informação que administramos a título de opinião está sujeita a mudança, da mesma forma que nossa visão dos objetos se modifica pelo deslocamento de posição, seja do nosso olho ou do objeto.

Não é o que ocorre quando temos conhecimento. De modo similar à crença, o conhecimento retém um feixe de aspectos dos objetos. Mas o que o distingue é o fato de focalizar os traços permanentes do objeto. Desse modo, a grande diferença, para Platão, entre opinião e conhecimento é que a primeira fornece ao sujeito um quadro provisório do mundo, ao passo que o conhecimento é o estudo daquilo que jamais muda.

No Teeteto Platão diz que é preciso que a mente se ponha a raciocinar sobre os dados para que haja a formulação de um conhecimento. O raciocínio é uma atividade do pensamento, para Platão a mais nobre, porque é por meio dele que conseguimos atingir o verdadeiro núcleo de cada realidade.

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