Antes de assistir ao filme, leia a análise abaixo:
A História, dentro
de sua espiral dialética, muitas vezes é cercada de contradições que contrapõem
o próprio tempo vigente. Dessa forma, não há como assumir uma neutralidade
dentro das partes dos fatos espaciais e temporais.
Partindo desse
pressuposto, no caso específico de uma guerra, o fator determinante não é quem
está certo ou errado, mas quem tem os melhores recursos e estratégias para se
legitimar nos anais como senhor da verdade de um conflito, pois os fatos serão
contados dentro da óptica do vencedor.
A Guerra de Canudos
talvez tenha sido o mais triste desencontro da nacionalidade já visto na
História do Brasil, onde o Estado Republicano literalmente massacrou a segunda
maior cidade populosa da Bahia, por conta da insurreição da população local
contra o descaso político e social do governo, criando praticamente um Estado
paralelo.
Essa mancha nas
páginas da História Brasileira, tão bem relatada por Euclides da Cunha, com um
cunho de literatura sociológica em “Os Sertões”, ganha vida na forma de
película, com direção de Sérgio Rezende: “Guerra de Canudos”.
Com elenco principal
de atores globais e 5.000 figurantes, os 169 minutos do épico lançado na
comemoração do centenário do conflito, são conduzidos, além dos fatos já
conhecidos, pela visão dividida de uma família sobre a figura de Antônio
Vicente Mendes Maciel, ou simplesmente, Antônio Conselheiro (José Wilker).
Zé Lucena (Paulo
Betti), marido, Penha (Marieta Severo) Mãe, e Luiza (Claudia Abreu) filha,
protagonizam o drama das famílias do sertão baiano, onde a fome, a miséria e a
falta de informação imperam.
Após ter problemas
com os agentes da autoridade, por conta de impostos, Zé Lucena se vê numa
situação difícil pela falta de perspectiva com a nova política do governo
republicano, assim como de estrutura para dar melhores condições de vida à sua
família. A partir dessa crise, inconformado, ele resolve dar outro rumo para
sua vida e de sua família, com o intuito de buscar novas perspectivas e deixar
para trás uma história que não deu certo.
Dentro desse
contexto, aparece a figura de Antônio Conselheiro, homem provido de palavra
amiga e reconfortante, que após muitas andanças pelo agreste e depois de uma revelação
divina, promete encontrar uma terra onde todos os seguidores possam ter
prosperidade e louvar a Deus.
Zé Lucena está
convencido das palavras proferidas por Conselheiro, contudo sua filha mais
velha, Luiza, não concorda e se rebela contra o “profeta” e a família, fato
ímpar para a época, indo embora para desespero da mãe e dos irmãos.
A partir desse
episódio tem início a saga marcante de Lucena e sua família, no levante da
construção do vilarejo até os conflitos com as forças do governo. Os moradores
do arraial veem no discurso e na política de Antônio Conselheiro a
materialização da esperança mediante a construção de uma estrutura de
“bem-estar” que até então não conheciam.
O cotidiano vivido
pelas famílias está calcado no trabalho e na mobilização da fé por meio de
rezas e a construção de igrejas. Porém, tal harmonia terá um preço que gerará a
eclosão de conflitos sangrentos onde o Exército age com estratégias patéticas e
perde a maioria das batalhas ou por falta de provisão, ou pela vaidade e ignorância
territorial dos comandantes.
No meio dos
conflitos, Penha demonstra ao marido sua descrença em Antônio Conselheiro, mas
o marido é fidedigno. Além disso, Luiza reaparece, no entanto, agora, como
esposa de um soldado do inimigo (Tuca Andrada), mas com o intento de salvar a
família da catástrofe que estava por vir. Entretanto, não consegue convencer o
pai.
Além da família de
Zé Lucena, como foco central, há também a personagem Pedro (Roberto Bomtempo),
como fotógrafo. Ele ganha status de analista da situação, fazendo reflexões das
ações do Exército, em determinadas situações, com comentários e fotos, causando
desconforto nos comandantes do alto escalão, entre eles o temido Moreira Sales
(Tonico Pereira).
Entre as
intensidades e baixas dos combates, o cenário vai se tornando cada vez mais
desolador para ambas as partes, tal que, a falta de recursos faz com que os
combatentes, muitas vezes, combatam sem o mínimo de escrúpulos para atingir
seus objetivos de sobrevivência.
Dessa forma, o
aparelho da República é visto como anticristo pela comunidade do vilarejo e,
nos momentos derradeiros, alguns preferem tirar a própria vida a se entregar ao
inimigo, denotando que talvez seja a maneira de legitimar a morte de forma
pura, pois há mulheres que entram rezando entre as chamas de casebres e igrejas
até serem consumidas.
Esse pesadelo
dantesco tem o epílogo que todos já conhecem, pela História ou pela Literatura,
entretanto não dá para deixar de estabelecer relação com os fatos atuais, pois
a miséria, a fome, a falta de informação e o descaso político continuam. O
Estado se faz muito mais presente com força de repressão e violência do que com
políticas sociais efetivas nas regiões menos favorecidas.
Nos arredores
daquela região baiana, o cenário de pobreza e aridez pouco mudou, Canudos hoje
é um açude, açude de Cocorobó, e na região abissal daquelas águas jaz os restos
mortais de milhares de pessoas que foram personagens de uma história covarde
que nunca deveria ter acontecido, literalmente uma chaga a céu aberto.
Postar um comentário:
0 comentários: